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Foto do site Nativos do Mundo

A impressão que tenho é a de que vivemos os tempos mais pretensamente assépticos que já vimos. Negamos algumas existências que nos são essenciais. Almejamos um mundo limpinho e deixamos à margem aquilo que nos faz quem somos. Criamos neuroses. Temos pavor só de ouvir falar em micro-organismos. Estamos matando aquilo que nos dá a própria vida.

Nossa boca é lavada com enxaguante bucal. Os dentes, obrigatoriamente precisam ser brancos. Pagamos caro por tratamentos intermináveis e por pastas de dente que irão deixar nossa vida muito mais white, como o sorriso do astro da TV. Nosso arroz é raspado a tal ponto que não nos sobra nada, a não ser sua brancura estéril. O açúcar é de um refinamento impecavelmente alvo. Do trigo, mais uma vez, nos servem somente a brancura vazia.

O sabonete do nosso banho é capaz de matar tudo. Diz a propaganda que cria uma espécie de bolha a nos isolar do submundo indesejável. Nosso colchão é antialérgico, antifúngico e antiácaros. A palmilha do nosso tênis vem de fábrica com um banho de produtos milagrosos.

Nossos alimentos são assepticamente programados para não conviverem com os insetos, essas criaturas pavorosas e demoníacas. As lavouras são nuas. Nada mais nasce à sua volta nem no seu lugar, a não ser a semente destinada a dominar aquele espaço tão estéril quanto ela.

Acho que estamos vivendo aquela cena profética do desenho do Bob Esponja que retrata um futuro onde absolutamente tudo é cromado, mas, mesmo assim, as flores teimam em nascer coloridas. Aqui no mundo real, os micróbios sempre vão existir porque eles são f*#d@, mas a gente vai continuar nossa eterna negação em relação a eles.

O mais grave desse cenário,  talvez nem esteja no uso do enxaguante bucal de todo dia. Pelo que já estudei a respeito desse mundo invisível, o mais provável é que depois do terceiro lote do sabonete matador, os germes já estejam dando risada da família feliz e falsamente protegida, criando réplicas de si mesmos capazes até de se alimentar do princípio ativo vendido pela indústria da higiene.

Mas, a meu ver, nada disso se compara a um outro tipo de assepsia que adotamos com cada vez mais convicção: a das palavras. Essa mata mais que atropelamento de automóvel. É por ela que negamos aquilo que consideramos microscópico. E, se é microscópico, é invisível. Se é invisível, é um micróbio. E micróbio faz mal. Tem que ser exterminado. No máximo, mantido em um ambiente controlável.

Nesse terrível processo de negação, as palavras vão se esvaziando. Uma a uma. Vai se esvaziando a nossa humanidade.

E é com essas palavras vazias que vamos criando explicações para o inexplicável. Defendemos o horror fazendo cara de normalidade. Refutamos o óbvio com um cinismo que chega a soar como ingênuo. Mas, sabemos que não é. É só mais esvaziamento mesmo.

Então, com a consciência tranquila dos justos (vazia), vamos pra rua crentes de que “estamos fazendo a nossa parte”. Sinto é que estamos nos matando. O que nos preenche parece escapar por algum lugar daqueles bem pequeninos, como os furinhos de uma piscina de plástico. Estamos morrendo uma morte lenta na crença da assepsia. Do mundo limpo. Sem seres indesejáveis.

Indesejáveis em qualquer instância.

Porém, basta virar o prisma e um pequeno vírus nos tira a vida. Ou uma bala perdida. E os indesejáveis passam, então, a sermos nós.