Sem título

Estabelecemos estranhas relações com os objetos. Trazemos para perto aquelas coisas que nos representam e, com isso, geram identificação simbólica inconsciente. Para ilustração do tema, há os casos históricos já dissecados por Freud e Jung, em que o carro se torna símbolo de potência, que o batom é um objeto fálico e, por isso, sedutor, e que a mulher que usa tons pasteis nos trajes quer, na verdade, ser infantilizada. Passemos adiante.

Assim, tudo aquilo que trazemos para perto vem fazer parte de nosso pequeno museu particular, que chamamos de ‘lar’. Os objetos perduram, ao contrário de nós, que somos finitos. Acumular objetos nos sacia do medo do esquecimento, é uma espécie de comprometimento com a materialidade. Continuamos vivos em roupas, bibelôs, antigos diários, são conexões materiais que temos com a impermanência. É a certeza de que aquilo que foi, realmente foi, e não se trata de mera coisa de nossa cabeça. A prova cabal da infância. O souvenir da viagem. A (ilusão da) segurança frente ao inexorável.

Aí vem a cultura oriental e nos mostra que aquilo que presta mesmo, a gente carrega dentro de si, e o resto é perfumaria. Que é preciso liberar-se do velho, para permitir que venha o novo. Que, mais do que let it go, se faz necessário um let it come. Que energia parada mofa até o espírito. Os japoneses possuem mesmo um processo organizacional chamado 5S, que trabalha diferentes etapas na relação que estabelecemos com os objetos, ponderando coisa por coisa e quais rumos devem ser dados aos utensílios. É um processo amplamente cultural, adotado em empresas, nos lares, e perpetuado entre as famílias, para que se desenvolva, sempre, um respeito com o objeto.

Mas como se respeita um objeto?

Usando. O nome ‘utensílio’ vem daquilo que é útil. Se fica guardado, se é o ‘ter por ter’, então deixa de cumprir com a finalidade para o qual foi criado, e se torna… inútil. Assim, quando penso em uma nova aquisição: por que valorar tanto o novo? Se tenho algo em casa que me acompanha há tanto tempo, já me deu sorte, já me fez alegre. A alegria, philia, de amar o que se tem.

[Desde muito cedo compro o que me falta com base naquilo que me desfiz, e certamente, lendo isso, muitos que me conhecem pensarão na minha coleção de bonecas e nas minhas Melissas; então, reflita comigo, antes de julgamentos apressados: se tenho tantas, quantas mais deixei de ter? 😉 ]

Cada objeto tem sua utilidade e seu fim; da mesma forma, cada etapa de nossa vida revela diferenças entre o eu de hoje e o eu que já fui. Quando vejo fotos da minha infância, da adolescência, ou mesmo do ensino superior, a sensação é de alteridade, não de identidade. Sei que aquela sou eu, me recordo de coisas que fiz e entendimentos de mundo que tive quando era elas. Mas elas e eu não somos mais a mesma pessoa, embora elas estejam contidas em mim.

Do mesmo modo, quando algo deixa de nos representar, não devemos olhar com medo de perda para esse objeto que faz referência a um passado distante, pois ele certamente será parte do presente útil de alguém no hoje. Não nos tornamos menos por permitirmos essa liber(t)ação do objeto, já que cedemos espaço para que nos tornemos mais. Aquilo que somos, já somos, está em nós e não se perderá. O ego resiste a esse pensamento e quer tudo para si, enquanto a morte psicológica requer o entendimento de que damos um passo para mais perto de uma versão melhor de nós.

Não sejamos, nós mesmos, um museu empoeirado.