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Óleo sobre tela “Sacrifício de Isaac”, por Caravaggio, 1603.

No segundo texto que publiquei nesta coluna, eu sugeri que transcendêssemos o determinismo que a dualidade exerce sobre nosso modo de pensar e buscássemos um ponto mais equilibrado. Na ocasião, ative minha reflexão sobre um mundo que costuma se dividir entre a ciência e a religião e, como sugeriu nosso amigo Rafael Reinehr, encerrei com um blend entre os dois.

Mantenho a proposta de dizermos não aos extremismos. Mas, acho que algumas coisas precisam ficar mais claras para que consigamos, de fato, ter essa autonomia de escolher o próprio caminho. Porque, na maioria das vezes, não escolhemos um caminho autônomo. Misturamos as coisas para justificar crenças e teorias pelas quais nos apaixonamos e agora estamos com medo de descobrir que podemos estar errados.

É aquele momento em que usamos argumentos infundados e confundimos religião com ciência. Bíblia com História. E, pelo que vejo, é essa falta de clareza – muitas vezes mantida e alimentada de maneira proposital por quem já sacou que não é esse o caminho – que nos mantém a todos “domados”.

Essa falta de clareza é o que nos faz rechaçar o que desconhecemos e nos induz a tomar a parte pelo todo. A acreditar que a fração é a verdade absoluta. É o que nos faz ficar com as migalhas em detrimento do pão e, pior, de um jeito que faz parecer ser essa uma escolha voluntária.

E então, nós nos prestamos aos papéis mais ridículos já registrados na história da humanidade.

Um deles ocorreu em 1848, na Suíça, quando as plantações inteiras estavam sendo devastadas por besouros. Sem se dar conta de que as monoculturas propiciavam a proliferação das “pragas” pelo simples fato de haver abundância de comida para os insetos, os agricultores não sabiam o que fazer. Amargavam prejuízos. E ignoravam a ciência.

Incomodado, o prefeito da cidade de Berna nomeou um advogado. Este, por sua vez, procurou a mais alta hierarquia local: uma corte eclesiástica. Os fazendeiros exigiam que os besouros fossem julgados pelo representante de Deus na Terra alegando que os insetos eram maldosos, apesar da bondade do seu criador.

A corte ouviu as queixas dos fazendeiros e os argumentos do advogado nomeado como defensor dos besouros. Ao final, o bispo considerou que os insetos eram encarnações do demônio e os excomungou “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, expulsando-os das plantações. É óbvio que os ataques às plantas não cessaram. Então, os fazendeiros acreditaram se tratar de um castigo divino e resolveram pagar dízimos à igreja como forma de agradar a Deus. O episódio está mais detalhado nas páginas 319 e 320 de O Livro de Ouro da Evolução, de Karl Zimmer, sobre o qual também falei na coluna número 2.

Esse fato, considerado histórico, parece uma bela piada, mas ele não só é fato como cenas assim se repetem até hoje. Ele me voltou à lembrança nos últimos dias por causa de duas reportagens exibidas na televisão em momentos e contextos diferentes. Eram duas histórias simples, mas que não consegui deixar passar em branco. Elas me doeram na alma.

A primeira delas mostrava as tradicionais procissões a São José, no mês de março, pedindo chuva para o sertão nordestino. Um grupo de mulheres percorria milharais entoando cânticos e orações enquanto uma delas carregava, com os braços erguidos, uma imagem do santo. Terço entre os dedos, lágrima nos olhos, coração angustiado pela falta de chuva além do normal. Pelo medo da falta de dinheiro. Da falta do de comer, se a chuva não cair.

A segunda reportagem contava a história de um homem muito simples que vive no interior da Bahia. Acometido por uma doença grave nos olhos que o está cegando, ele recorreu à água que escorre nas paredes da gruta de Bom Jesus da Lapa, que fica às margens do Rio São Francisco. Ele acredita que, molhando os olhos, ficará curado e voltará a enxergar.

Para mim, essas duas cenas são dois dos tantos retratos da crueldade humana. Não pude deixar de me colocar do outro lado desse balcão. Não pude me esquecer de tantas cenas horrendas que temos acompanhado ultimamente e que são as responsáveis pela cegueira daquele homem e pelo medo daquelas mulheres, todos eles tão puramente devotos. É disso que falo quando prego sobre a autonomia das pessoas. Quando afirmo que o mundo precisa de mais anarquia.

Cada um tem o direito de acreditar naquilo que lhe traga mais conforto. Mas, não considero justo que aquelas mulheres não tenham o direito de saber que a seca é provocada por um desequilíbrio ambiental e não pelos humores dos deuses e santos. Enquanto elas rezam e imploram compaixão do céu, as engrenagens – tão maiores do que elas – continuam rodando pela seca e pela miséria.

Aquele homem tem direito de saber que sua cura não está na água da chuva que é absorvida pela terra e, por consequência, escorre pelas paredes de uma caverna. Aquele homem tem o direito de saber que há um tratamento adequado para a sua doença e que há uma lei universal que lhe garante o acesso a todo tipo de recurso possível pela sua saúde e pelo seu bem-estar.

Embora eu não pratique nenhuma fé, não sou contrária a nenhum tipo de fé. Ao contrário, admiro a beleza das culturas humanas. Embora tenha horror à igreja, sou capaz de me emocionar em uma missa. Quando sinto a força de um grupo que vibra em uníssono, nunca resisto. Acabo me entregando. Acho bonito. Encontro segredos ali.

No entanto, cada vez mais acredito que é preciso aprender a separar as coisas. Nem tanto ao mar. Nem tanto à terra. E com a destreza de sempre buscar o ponto certo dessa mistura perigosa que é a vida a fim de não viver sem amor, mas também de não morrer pelo amargor da pura e ingênua ignorância.