Quem tem um mínimo de interesse pelo autismo, já reparou há muito tempo que tudo o que tem de ruim é sempre relacionado a essa condição neurológica. Qualquer lenda urbana ou nova descoberta científica que surja, vem logo um caminhão de lixo, estaciona na frente do autismo, levanta a tampa e despeja toda a sua porcaria sobre nós. Soterra.

Dietas. Vacinas. Vermes. Amamentação. Relacionamento com a mãe. Pílulas de alvejante. Pílulas de cocô (sim, oxítona mesmo). Intestino. Antibióticos. Tudo. Tudo causa autismo corram para as montanhas ou encontraram a cura para o autismo deus seja louvado.

Seria óbvio, se não fosse trágico, que uma substância como o glifosato seria automaticamente conectada a nós, seres desse universo paralelo extradimensional chamado autismo. Em mais uma tese mirabolante dessa sociedade psicofóbica em que eu vivo, meu filho é autista porque eu consumi glifosato demais na minha vida, especialmente durante a gravidez e isso teve tamanha influência na formação do cérebro do meu filho que, claro, ele nasceu autista.

O autismo tem ondas. Elas vão e vêm, mas sempre estão presentes. Recebo toneladas de artigos, posts, depoimentos, vídeos todos os dias sobre vacinas, sobre dietas, sobre cura, sobre experiências.

Eu não sei se é quando a Lua entra em Júpiter ou se ocorre de tempos em tempos um alinhamento específico dos astros, mas o certo é que ciclicamente o glifosato é uma dessas ondas. E ela parece estar em alta agora. “Veja, Giselle, você é uma vítima da Monsanto. O autismo do seu filho “não é culpa sua”, nós te perdoamos. Estamos vivendo uma epidemia de autismo e podemos barrar isso parando de usar glifosato. Olha. A cientista explica tudo”.

Bem. Antes mesmo de desconfiar dos argumentos “científicos” sobre essa tese, a primeira sensação que pesa sobre o meu peito é o quanto vocês nos consideram repulsivos ainda que sorriem e acenem para nós. O quanto vocês não nos querem aqui, definitivamente. E seus argumentos de que “somos todos ignorantes”, “as intenções são boas”, “não entendemos nada de neurologia, desculpe”, “eu só quis ajudar”…

Olha.

Parem de piorar as coisas.

Cada vez que isso acontece, eu olho para o meu filho e o vejo morto. Mutilado em praça pública por uma multidão e seu cadáver exposto para que todos aprendam. É essa a imagem.

Mas, vamos lá. Glifosato.

Um dos argumentos estapafúrdios é de que aumentou o número de casos de crianças com autismo nos Estados Unidos (sempre Estados Unidos… ai meuzovo). Primeiro: a prevalência precisa de revisão em todo o mundo. Um dos motivos atende pelo nome de machismo. As mulheres são no geral subdiagnosticadas e agora estão começando a ser ouvidas. Agora estão começando a se descobrir e a se entender.

Segundo: o que aumentou foi a identificação do autismo e não a quantidade de pessoas autistas. Os genes do autismo sempre estiveram entre nós. Circulam pela humanidade desde que o mundo é mundo. Autistas sempre existiram! Muito antes do DDT. Muito antes da Monsanto. Muito antes do Roundup. É quase 100% certo que esse computador aí que você está usando agora, ou esse celular, ou o aplicativo tem o dedo de um ou mais autistas no seu processo de criação e produção. O Atari que você jogava nos anos 80 teve um autista no seu departamento de criação que revolucionou a empresa. A guitarra do Kiss que soltava fogo foi criação de um autista. Uau, né. Eles estão em todos os lugares, sabia?

E vou te contar um segredo: autismo não “dá” só em criança. Nos próprios EUA, já se constatou que praticamente a metade dos novos diagnósticos é de adultos que estão se descobrindo autistas porque a informação está mais acessível, mais autistas estão atuando publicamente contado suas histórias com as quais centenas de pessoas se identificam e os instrumentos de avaliação e diagnóstico estão cada vez mais refinados, acessíveis e são periodicamente revisados.

Se o autismo tivesse a ligação que dizem que tem com o glifosato – que influenciaria diretamente nas redes neuronais – as pessoas se tornariam autistas. Teríamos dezenas de pessoas “virando” autistas depois de adultas. Mas vou dar uma colher de chá e vou explicar de novo: autismo é uma condição neurológica (funcionamento do cérebro dessa pessoa é diferente daquela estabelecida como padrão) de origem genética. Isso significa que ninguém vai ficar autista. A pessoa nasce autista. Assim como ninguém fica preto. A pessoa nasce preta. Assim como ninguém fica com olhos verdes. A pessoa nasce com olhos verdes.

Se fosse assim porque sim, como um pó de pirlimpimpim e o glifosato estivesse ligado à ocorrência de autismo, e se o autismo fosse uma epidemia, e se o mundo estivesse correndo o sério risco de em 2025 ser habitado somente por autistas, teríamos casos de autismo depois da idade adulta. E centenas de bilhares de trilhares de casos desses no Brasil, um dos países que mais consomem glifosato no mundo. All right?

Não. Eu não estou aqui para bancar a “mercadora da dúvida” como sugeriram em um grupo sobre agrofloresta em que, pela segunda vez, postaram coisas sobre alimentação orgânica e autismo e glifosato.

É desonesto supor que estou aqui defendendo a Monsanto e o glifosato porque é óbvio que não. A gente não precisa ter profundos conhecimentos em qualquer coisa para perceber que uma substância que mata a vida que tem sobre a terra e tem o agravante de ser usada sobre alimentos precisa ser banida e fim. É óbvio que isso é fruto do capitalismo e que etc. vamos lutar contra ele etc.

Mas essa luta tem que ser honesta e não pode ser psicofóbica.

Ou vocês acham que eliminando o glifosato da Terra eliminaremos o autismo?

Percebem que é isso que vocês dizem quando publicam essas coisas?

Não, nós não queremos glifosato. Mas também não queremos estar ligados a toda desgraça do planeta. Tudo o que vocês acham ruim e querem a qualquer custo convencer as pessoas, vocês usam esse tom alarmista apelando para o autismo como uma ameaça ao futuro do planeta. Vocês não entendem patavina de genética, neurotransmissores e outras substâncias. Leem um artigo qualquer de um charlatão qualquer que faz uma sopa com todos esses termos e saem feito papagaios dificultando mais e mais a nossa vida. Vocês não fazem ideia do quanto isso é ruim.

Quero mais é que a Monsanto feche as portas e seus donos morram doentes e falidos carregando toda a desgraça que provocaram ao mundo. Mas, por favor, vamos fazer uma campanha honesta e sincera contra essa porcaria?

E, olha, a despeito da Big Pharma e de todas as pesquisas manipulatórias que existem por aí (incluindo aquela que diz que vacina causa autismo txãrã), ninguém precisa vir aqui me soterrar de artigos em inglês das universidades de Oxford, Stanford, Harrison Ford pra tentar me convencer de alguma coisa. Eu conheço pessoalmente pesquisadores brasileiros bastante sérios que conduzem pesquisas bastante sérias há décadas sobre a relação do ambiente (poluição, metais pesados, glúten, agrotóxicos e dezenas de outras coisas) e o autismo. Conclusões? Até agora, nada. Só a do charlatanismo, da chantagem, do sensacionalismo e da extorsão. Ficou faltando referência? Vou dar só uma: Décio Brunoni, geneticista. Ele te explica direitinho, didaticamente. Mas tem um montão mais, é só querer.

De lambuja, deixo a Amanda e o Vitor aqui com vocês para uma boa aula. Eles oferecem pistas ainda melhores do que as minhas para nortear você na sua luta contra a Monsanto e a favor da vida no mundo.

Antes de falar sobre autismo, ouça os autistas.