Damos aos nossos problemas uma força muito maior do que eles tem. Parte dessa força vem extraída de nossas conclusões sobre nós mesmos. Acreditamos, cada vez mais, que precisamos estar em incessante movimento para que não nos deparemos com o atraso ou com mais problemas.

Tornamo-nos parte da geração que não dá mais bom dia no corredor do trabalho, nem pede licença no setor de congelados do supermercado, paramos de nos compadecer com as dores de quem mora ao lado, aceleramos nossos dedos para construir epopeias sobre os problemas mundiais, mas muitos de nós esqueceram de construir pequenas estrofes de sossego matinal.

Tenho lido muito e minha miopia talvez seja minha maior inimiga nesse prazer que nutro desde tenra infância, pois os olhos cansam e a mente se desobriga a viajar no timbrado do papel. Dia desses, relendo o livro “Questões de Gênero: Feminismo e Subversão de Identidade” de Judith Butler (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2017), atentei a um trecho específico e que, possivelmente pelo momento pessoal em que me encontro, que me clarificou muitas questões, ei-lo:

“No discurso vigente na minha infância, criar problema era precisamente o que não se devia fazer, pois isso traria problemas para nós. (…) concluí, que problemas são inevitáveis e nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los.”

A cada leitura que fazemos de um material, seja ele uma propaganda, um contrato, uma obra literária, nosso cérebro direciona-se à descoberta de um elemento novo e portanto, em momentos diferentes, um mesmo trecho pode nos provocar questionamentos distintos – é aquela constatação de Heráclito de Éfeso de que não podemos banhar nossos corpos duas vezes no mesmo rio, posto que tanto ele quanto nós jamais seremos os mesmos. Por certeza que a epifania não é essa, encontra-se com as minhas perspectivas e a minha forma de escrever. Da mesma forma que o encontro com diferentes pessoas nos fazem mudar as perspectivas de vida e aqui vai uma confissão: o texto que viria à publicação não seria esse, mudou.

Re-conectando com o lamurio das primeiras linhas, parto para o questionamento de como estamos encarando nossos problemas, de que forma os estamos construindo, que forças estamos dando a essas situações que nos fazem parar? A geração que não pode parar, que está conectada até quando está descarregando o que a fisiologia se propõe a fazer nas espécies vivas e que anseia pela estrelinha dourada feito criança aprendendo a letra cursiva já não sabe lidar com problemas sem querer determinar suas fórmulas de resolução como universais, como venda de protocolos de ação pois TUDO É MERCADO. Não vivenciamos as situações como momentos de reflexão sobre nossas atitudes e sobre as responsabilidades implicadas nas produções de nossas vidas, estamos à beira do encontro com o lobo em sua face mais absurda: o homem é um robô.

Há que se ter o sono perfeito, a pele perfeita, a conta perfeita, o discurso perfeito, as soluções perfeitas, viagens perfeitas, coloque filtro nisso, encha de tags, multiplique os termos estrangeiros, consuma, prove que você é parte da estatística, não recuse mais um emprego, não tenha sossego e se tiver sossego não esqueça de compartilhar. Passamos a vender nossas imagens mais do que um retrato a ser comentado por quem tiver acesso e tempo, vendemos nossa história como quem precisa de atenção e aprovação pois o valor das experiências deixou de existir no momento e na lembrança, vive na reverberação das falas alheias.

Nossa vida, nosso corpo tem-se tornado teatro para aplauso alheio e não cócegas internas de alegria, a busca de uma verdade que dizem estar escondida, a corrida pela promessa de uma geração passada que disse que tudo ficaria bem e se não ficou é porque sempre poderá… temos medo quando não há respostas, quando nossos desejos não se põem realizados, quando nossa sorte não é assinada rapidamente pelos nossos parcos esforços.

Somos a geração que mais sente medo, medo inclusive de não sentir medo, pois “aventurar-se é preciso e quem tem coragem se joga e se jogando é natural que sintamos esse frio na barriga” – confundem muitos o despreparo, a arrogância e até a fome com o tal frio na barriga; alimenta-mo-nos do medo do sofrimento, do desemprego, da solidão e mal percebemos que tudo isso parou de preencher-nos há muito tempo provocando em pleno século de ápices de desenvolvimento tecnológico, grupos que não evoluíram emocionalmente. Carentes de status acumulamos lixo eletrônico, físico e digital, por não sabermos lidar com o que já temos.

Temos sim problemas, mas de que formas os temos produzido? Prometemos a nós mesmos o sucesso que é julgado pelo outro, mas não conseguimos vencer a leitura de um texto acadêmico, não aprendemos mais com os nossos pares, discutimos que a geração passada nada soube nos ensinar quando bem sabemos que nossos ouvidos estavam bloqueados por algum fone… temos medo, medo de encararmos que quando a música acaba e a bateria fica falha é essa coisa chamada humanidade que nos resta, que o olhar do outro já tanto pesa que é não raro estranhamos quando somos percebidos e os percebemos.

Que melhor maneira é essa de produzir e ter problemas, Judith? Que melhor maneira é essa de produzir uma pausa e perceber que talvez o que pensemos ser uma derrota é apenas um ponto de vista distorcido, uma lição que deixa de ser apreendida, uma chance de desviar dessa corrida? Melhores maneiras… ora, é apenas uma forma de dizer que precisamos ser capazes de sustentar nossas decisões, em nosso tempo, com nossa consciência naqueles momentos em que a lâmpada das ideias se apaga e o alerta se propaga (vish…) que sempre há uma solução, mas não vive quem não se põe a atravessar o labirinto que é a vida.

Que temos feito com nossos problemas e o que eles tem feito de nós?
Qual o tamanho que temos dado para as barreiras quebradas pela tecnologia e utilizadas para nos conectar com os distantes, cegando-nos da potencial mudança que é a melhoria do perto e que perto mais perto que não nós mesmos?