E a ciência tende a concordar com isso. É bem provável que essa escolha não tenha sido um instante de desobediência e que não tenha nenhuma relação com a ingestão de uma fruta proibida.
Dificilmente foi num lindo dia de sol em que uma mulher acordou bem disposta, trocou uma ideia com uma cobra e disse ao companheiro: “Adão, hoje vamos sair do paraíso. Come aqui essa maçã…”. Certamente essa escolha não produziu um ato único e nem consequências instantâneas.
Mas, o fato é que, consciente ou inconscientemente, por necessidade ou circunstância, nós fizemos essa escolha. E hoje pagamos o preço por isso. Não que esse preço seja algo ruim. Temos também vantagens por ter descido da árvore ou, como se diz por aí, comido a maçã.
Sob o ponto de vista científico, é importante que compreendamos a expressão “algum momento” como uma sucessão de fatos e transformações que culminaram em um resultado que a ciência possa considerar bem sucedido.
Bem sucedido = transmitido para a geração seguinte.
Nessa linha de estudos, nós somos a geração que herdou a escolha da saída do paraíso.
Somos o que o zoólogo Desmond Morris chama de macaco nu, tendo inclusive escrito um livro com esse nome.
O livro é antigo, de 1967. Eu o considero bastante controverso. Muito do que ali está acho que é até perigoso que seja estabelecido como verdade. Mas ele tem uma proposta interessante. Morris observa a espécie humana não sob o ponto de vista de um sociólogo ou antropólogo, mas ele busca aplicar as técnicas de observação do seu trabalho: a zoologia.
Sim. Ele tenta nos observar como criaturas a serem estudadas sob o ponto de vista da ciência biológica. Esse é o ponto controverso e polêmico do seu trabalho que, sim, apresenta alguns pontos de vista que podem ser considerados absurdos já que é praticamente impossível desgrudar o ser humano da sua carga cultural e social.
Mas no seu livro O Macaco Nu, Morris explica uma das teorias mais aceitas até hoje sobre como saímos do paraíso e nos tornamos o que somos, aí sim, a partir do surgimento da cultura. E essa análise não é de se jogar fora.
Segundo essa teoria, no começo de tudo, éramos essencialmente frugívoros. Raramente arriscávamos algum inseto, mas só mesmo em caso de extrema necessidade.
Vivíamos sobre as árvores e, na ~vagabundagem~ – ou felicidade, eu diria – limitávamo-nos a esticar o braço e a colher a fruta ou o broto que estivesse ao nosso alcance para matar a fome.
Até vivíamos em grupos, mas pouco precisávamos uns dos outros. Vivíamos dia após dia. Os dias eram feitos para pular de galho em galho em busca de frutos maduros e as noites, para dormir. E fim. Sem necessidade de responsabilidade ou planejamento. Era o Hakuna Matata na sua plenitude.
Mas, o mundo mudou e transformarmos nossos hábitos por completo, se tornando uma questão de sobrevivência. Houve uma “inversão de valores” (desculpem, não pude perder essa ironia rsrs). Nós nos vimos forçados a aventurar por novas experiências. Descemos das árvores e experimentamos comer… carne.
E para conseguir carne, passamos a gastar mais energia. O gasto maior de energia e a disposição menor de comida passaram a exigir planejamento. A busca por comida, agora perigosa, impôs responsabilidade. Ela já não estava mais ao alcance das mãos e passamos a precisar de ajuda. Além disso, os filhos passaram a depender cada vez mais dos pais.
A manutenção da vida começou a ter um preço. Foi a partir daqui que saímos do paraíso. Mas, ao mesmo tempo, aprendemos sobre cooperação. Sobre cuidado. E então, ainda de acordo com essa mesma suposição científica, foi quando nasceu o Amor, essa substância capaz de nos manter unidos.
Mas, como às vezes acontece com a luz, com ele também nasceu a treva. Nasceu o ódio, que é a outra face extrema da mesma moeda. Nossas relações passaram a existir sobre o fio de uma navalha.
E esse é o caminho da consciência. Caminhar sobre ele é andar num slackline. O meio sempre será o equilíbrio. Qualquer pendida para um dos lados, seremos engolidos pela dualidade e pela mentira de que há uma divisão perfeita entre amor e ódio.
De nada adiantaria permanecermos no paraíso. A ingenuidade e a inocência são inúteis sem consciência. Da mesma forma, embora em um momento inicial a gente possa até acreditar que, excluindo nossos “companheiros de caça” vamos sair ganhando, a verdade é que nunca alcançaremos a felicidade sozinhos. Vamos morrer de fome.
Portanto, pouco importa se você prefere acreditar em Adão e Eva ou na teoria do macaco nu. O importante é sabermos que se entramos nessa jornada, foi para fabricarmos consciência. E nada mais.
“Vivíamos sobre as árvores e, na ~vagabundagem~ – ou felicidade, eu diria”, então no seu ponto de vista, neste suposto paraíso, a felicidade é possível sem amor e consciência? E, sendo assim, o advento do amor e da consciência custou-nos o preço da felicidade? Com amor e consciência não é possível ser feliz?
O título é “Nós escolhemos sair do paraíso”, mas você aponta uma suposta mudança inexplicável no mundo que nos obrigou, “fomos forçados”, a sair do paraíso e buscar novas experiências, ou carne, havendo, do nada, uma inversão de valores, que valores foram invertidos?: “Mas, o mundo mudou e transformarmos nossos hábitos por completo, se tornando uma questão de sobrevivência. Houve uma “inversão de valores” (desculpem, não pude perder essa ironia rsrs). Nós nos vimos forçados a aventurar por novas experiências. Descemos das árvores e experimentamos comer… carne.
Oi Luciano! Que legal tua participação. Adorei as observações. A coisa mais legal pra alguém que “pensa em voz alta” é se sentir ouvido de alguma forma. Vamos por partes: o que acho é que era uma felicidade sim, mas inconsciente. Ou seja, o famoso “eu era feliz e não sabia”. Quando a gente tem consciência da felicidade e do Amor, cuidamos muito melhor deles. Foi isso que eu quis dizer. E a respeito da “inversão de valores” eu fui irônica. Nós poderíamos ter continuado sobre as árvores, mas, de acordo com a teoria apresentada no livro de Morris, se tivéssemos escolhido isso (e não assumido os riscos de descer da árvore e nos lançar à caça) não teríamos evoluído (evolução não no sentido filosófico, mas biológico) para o Homo sapiens. Talvez parássemos a aventura por ali. Pelas condições climáticas, o ambiente propício para continuarmos no Hakuna Matata era muito reduzido. Possivelmente não nos espalharíamos pela Terra. Seríamos hoje mais um grupo de primatas peludos, talvez. Minha ironia em relação à “inversão de valores” é que aquilo que se tornaria ser humano (e por isso se tornaria) teve que mudar seu modo de se relacionar com o mundo se quisesse se expandir. Toda proposta nesse sentido, hoje, é encarada como uma “inversão de valores”, quando nem sempre o é. Então, escolhemos sair do paraíso, mas não sem um empurrãozinho (no caso, as condições ambientais e a necessidade de ampliar o cardápio, por exemplo). Por isso escrevi que “nos vimos forçados” e não FOMOS forçados. Mas a escolha de ir em frente e aventurar ou continuar como estávamos, abrindo mão das conquistas em troca das frutas à mão, foi, por assim dizer, nossa. E foi essa aposta alta, altíssima, nos trouxe até aqui. Agora, no meu ponto de vista, é chegada a hora de darmos mais um passo. Avançarmos nessa caminhada pela consciência. Que mais podemos aprofundar?
Muito obrigado por responder as minhas indagações. Se fôssemos aprofundar mais nosso diálogo aqui, eu optaria, agora, pelo tema “consciência”, a última frase que você escreveu em sua resposta: “Avançarmos nessa caminhada pela consciência”. Pensando ainda em termos de humanidade, de espécie, ou raça, não sei, eu me pergunto: para onde estamos indo? Para onde deveríamos ir? E, temos consciência desse processo? Definir consciência não é algo muito simples, inclusive há diferentes argumentos sobre o que seja consciência. A que me parece mais óbvia é a que surge da própria palavra “com ciência”, com saber, com conhecimento. E aí já esbarramos em uma tremenda encrenca. Do que temos ciência realmente? Por vezes chego a acreditar que temos mais ilusão de saber do que saber. Mais ilusão de ciência do que ciência. Mas, deixa pra lá, isto é assunto para uma vida, talvez mais. Abraço.