Qual a concepção de infância?[1] De adolescência? Existem múltiplas. Principalmente as concepções construídas historicamente baseadas numa perspectiva adultocêntrica. Infância e criança possuem o mesmo significado? Depende, mas o que os autores defendem atualmente é que é necessária uma ruptura com modelo epistemológico sobre a infância até então instituído. Nesta perspectiva, indaga-se quando surgiu a percepção de infância?

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É recente o interesse sobre a história da infância, e o historiador francês Philippe Ariés[2] contribuiu grandemente com o seu trabalho. Segundo o autor, na Antiguidade, as crianças eram consideradas adultos em miniaturas e o sentimento de infância era ausente. A partir de sua obra pode-se afirmar que o objeto discursivo a que chamamos de infância hoje é uma categoria da modernidade e que não pode ser compreendida fora da história da família e das relações de produção.

Particularmente no século XVIII, a ideia do ser criança foi nascendo socialmente, porém esta era considerada como um ser dependente, frágil, ignorante e vazio, que precisava ser treinado para ser um bom cidadão, cabendo à família a responsabilidade pela sua socialização (seria ainda assim em tempos atuais?). E é neste contexto (deturpado) que surge a consciência sobre a particularidade infantil. A família passa a ter um papel mais atuante e privado na vida das crianças, cabendo à mulher e a escola o papel de educação destas – interessante salientar que este cenário é referente às crianças de famílias burguesas, não aplicado às camponesas por exemplo.

A história da criança brasileira também acontece no quadro das mudanças societárias, sendo que as múltiplas vivências da infância ocorreram em razão do pertencimento social, racial e de gênero (percebemos que estes recortes não são inerentes somente a fase adulta, como se propaga). Desde a presença dos jesuítas no país, temos a configuração de distintas infâncias direcionadas por diferentes projetos educativos. Não muito diferente foi a história da criança negra escrava, iniciada no trabalho antes mesmo de completar sete anos de idade, enquanto a criança branca, da elite, estava destinada aos estudos. Dessa forma, a classe social, raça, etnia foram determinantes para múltiplas formas de vivência do universo infantil, não existindo, assim, uma forma específica de infância ou vivência do ser criança.

O reconhecimento da infância enquanto etapa do desenvolvimento humano, nos séculos XIX e XX, faz surgir a infância científica, com a propagação de conhecimentos construídos por várias áreas do saber, o que determinará um conjunto de teorias e práticas a serem desenvolvidas para cuidar dessa categoria. Novamente, esses saberes e instituições destinavam-se à criança burguesa enquanto outras infâncias coexistiam ao mesmo tempo, ou seja, a criança abandonada nos orfanatos, nas rodas de expostos, a criança explorada nas fábricas ou, ainda, privada de condições dignas de existência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente[3] designa criança toda pessoa até 12 anos de idade incompletos. Pode-se, assim, observar que no quadro legal brasileiro prioriza-se uma definição da criança pelo critério etário e pelo aspecto biológico. Já a Convenção dos Direitos da Criança, 1989, considera criança todo ser humano até 18 anos, estabelecendo o fim da infância no período de conquista dos direitos cívicos, como o direito ao voto. Os limites da infância encontram respaldos, além do campo legal, nas tradições culturais.

Em tempos atuais, os estudos da Sociologia da Infância demonstram que a infância é um projeto inacabado da modernidade e que seu curso tem revelado grandes paradoxos na contemporaneidade. O entendimento dessa construção da infância implica o reconhecimento de que:

“• a infância é construção social elaborada para e pelas crianças (deve ser) em um conjunto ativamente negociado de relações sociais. Embora a infância seja um fato biológico, a maneira como ela é entendida é determinada socialmente;

  • a infância como construção social é sempre contextualizada em relação ao tempo, ao local e à cultura, variando segundo a classe, o gênero e outras condições socioeconômicas. Por isso, não há uma infância natural nem universal, nem uma criança natural ou universal, mas muitas infâncias e crianças;
  • as crianças são atores sociais, participando da construção e determinando suas próprias vidas, mas também a vida daqueles que as cercam e das sociedades em que vivem, contribuindo para a aprendizagem como agentes que constroem sobre o conhecimento experimental. Em resumo, elas têm atividade e função; os relacionamentos sociais e as culturas das crianças são dignos de estudo por direito;
  • as crianças têm voz própria e devem ser ouvidas de modo a serem consideradas com seriedade, envolvendo-as no diálogo e na tomada de decisões democráticas, e para se entender a infância: as crianças contribuem para os recursos e para a produção sociais, não sendo simplesmente um custo e uma carga;
  • os relacionamentos entre os adultos e as crianças envolvem o exercício de poder (assim como a expressão do amor). É necessário considerar a maneira como o poder do adulto é mantido e usado, assim como a elasticidade e a resistência das crianças a esse poder”. (Dahlberg, Moss & Pence, apud, Andrade, 2010, p. 67).

Seria passada a hora de ouvirmos o que tem a dizer as crianças e compreender que elas não estão ali como um adorno e/ou para satisfazer as nossas necessidades/concepções adultas? Mais do que evidente elas são pessoas em desenvolvimento, com o seu universo particular sendo construído, assim como os nossos próprios universos adultos, apenas em fases distintas da nossa em determinado período de tempo. Por essa particularidade infantil necessitam sim de tratamentos ou cuidados específicos – no que falhamos miseravelmente –, mas como forma de auxílio com cuidado para que não se configure num caráter marginalizador. O mundo não foi feito para crianças, e precisamos mudar isso. É só passar os olhos para um ambiente qualquer que verificaremos que os móveis são grandes demais, as cores são adultas demais, e a “necessidade de silêncio” é limitante demais.  Crianças estão aí, precisam ser ouvidas e não negligenciadas. O que fazemos a elas hoje será o que devolverão a sociedade amanhã. Pelo que vivemos em comunidade, os adultos de hoje foram tratados de que maneira? Queremos repetir a atualidade no futuro?

[1][1] ANDRADE, LBP. Educação infantil: discurso, legislação e práticas institucionais [online]. São Paulo:

Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 193 p. ISBN 978-85-7983-085-3. Available

from SciELO Books <https://books.scielo.org>.

[2] ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

[3] Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm >