Placa que indicava área restrita aos brancos na África do Sul durante o regime do apartheid (foto: https://www.internationalinside.com)

Placa que indicava área restrita aos brancos na África do Sul, durante o regime do apartheid (foto: https://www.internationalinside.com)

Descobri que circula por aí um vídeo em que aparece uma moça que, enquanto escolhe feijão, explica – aparentemente para os seus patrões e não para usuários de redes sociais – como se formam as tempestades, os raios e os trovões a partir do momento em que a gente “polói” a Terra e qual a relação disso tudo com o surgimento de estrelas-do-mar, que outrora já teriam estado no céu.

Conhecendo a história assim, ela até pode parecer engraçada. Mas, antes disso, óbvio, ela é um completo absurdo. Os comentários são inúmeros. Avaliações culpando isso e aquilo pela ignorância da moça, culpando a moça, defendendo a moça.

O que não vi ninguém dizer é que aquele vídeo é nada mais do que o nosso retrato. Nós somos todos iguais àquela moça. Afinal, todos reproduzimos discursos, convencidos das teorias que aprendemos e também das que criamos.

Ela é um exemplo extremo e não-rebuscado da nossa própria ignorância. Basta navegarmos pela internet para encontrarmos dúzias de imagens com frases descontextualizadas buscando comprovar uma tese que é de alguém que tudo o que quer é encontrar pessoas que concordem consigo. Outras pessoas que estão nessa mesma busca, replicam esse conteúdo raso e está formada a infindável corrente de chumbo do senso comum.

Infelizmente, isso não é novo. Apenas ganhou algum fôlego com a internet.

Durante a I Guerra Mundial, Ernst Haeckel, um biólogo alemão muito influente na sua época, escreveu um livro intitulado “A História da Criação” ou “A História da Criação dos Seres”.  Eu chamaria esse livro de meme.

Com sua tese, Haeckel usa a evolução para justificar o massacre que foi a I Guerra. Apropriando-se das ideias de Darwin, ele “explicou” que o ser humano havia conseguido ultrapassar de forma excepcional os animais inferiores e previa um futuro glorioso de perfeição para a humanidade.

E ele ainda ia além. Muito além. Seguindo a toada da evolução, dividiu os seres humanos em 12 diferentes espécies. Algumas inferiores, outras superiores.

Quem era quem? Claro. África e Nova Guiné estavam na base da pirâmide. No topo, um tal de Homo mediterraneus. Até um nome científico a gente é capaz de inventar para justificar nossas loucuras. (Olha, Sr. Haeckel, se o senhor quiser, faço a minha lista de supermercado todinha em latim e nem por isso pago mais barato quando passo pelo caixa…).

Voltando.

Esse absurdo consegue ir mais longe. Na teoria do biólogo, entre os H. mediterraneus havia um grupo superior: os germânicos. Mas não quaisquer germânicos. Eram os que viviam na Europa e na América do Norte. O resto dessa história, eu não preciso contar. As cicatrizes ainda estão aí, expostas.

Essa não foi a única teoria esdrúxula publicada por um cientista e que ganhou o mundo a partir de um trabalho sério como o de Darwin, usando-o unicamente para tentar encontrar explicações para o indefensável.

Quem estuda mais de perto as questões ligadas ao feminismo, certamente já ouviu falar do livro “Uma História Natural do Estupro”. Sim. Como o título sugere, seus autores, que são biólogos, sugerem que o estupro é algo natural, uma adaptação evolutiva para que os machos alcancem maior sucesso reprodutivo e consigam espalhar a maior quantidade de seus genes possível. Esse livro não é da época da I Guerra. Muito menos anterior a ela. Ele é do ano 2000. Os cientistas ainda o discutem.

Outra apropriação dos estudos de Darwin deu origem à aberração conhecida como darwinismo social. Esse ideário tenta justificar o capitalismo usando a lógica da evolução das espécies como pano de fundo. Em linhas gerais, ele afirma que as pessoas mais ricas estão no topo da evolução. São os genes mais fortes. Pessoas pobres morrerm ao redor do mundo de fome e por doenças nada mais é do que seleção natural. São genes fracos que estão mesmo fadados ao desaparecimento. É o aprimoramento natural da raça humana.

Todos esses são apenas alguns exemplos do que nós, com discursos prontos, com ideias pouco trabalhadas e rasa investigação, perpetuamos ao longo da nossa existência. Se no meio acadêmico e científico há espaço para a disseminação de ideias assim, o que dizer de discussões e postagens de redes sociais? O que pensar sobre a mídia? Como confiar cegamente na escola?

A saída? Duvidar. Sempre duvidar. Duvidar dos mestres. Questionar os escribas. Esquadrinhar, antes de tudo, a si mesmo. Perceber que a gente enrijece, a gente enraíza ideias e conceitos. E quanto mais imbuídos estivermos das melhores intenções, mais corremos o risco de naturalizar injustiças e endossamos a ideia de que o mundo é assim mesmo.

Só que questionar de verdade é trabalhoso. É doloroso. Se perguntarmos a mil pessoas o que elas desejam para o mundo, mil pessoas irão responder que desejam o melhor. Mas, basta uma lupa para que todos esses desejos virem fumaça. E, dessa forma, nunca conseguimos sair do obscurantismo. Ao contrário, ele vai ganhando uma força que é desesperadora.