Cante o Hino Nacional inteiro, sem tempo pra pensar. Agora! Vai! Saiu sem nenhum errinho? Sem nenhuma dúvida? Ok. Então vamos na tabuada de 8. Bora! Não pode contar nos dedos! Foi? Sem pestanejar? Maravilha. Agora vamos de países e capitais. Não vale dar um Google. Eu digo os países e você, as capitais. Vamos nessa?

Andorra

Barém

Chipre

Listenstaine

Quiribáti

Saiu? Foi bem em todos os exercícios?

Corta pro consultório.

Lembro em detalhes do dia em que ouvi pela primeira vez sobre o ABA – Análise do Comportamento Aplicada, na tradução em português. Um dos mais famosos métodos de domesticação de autistas do mundo.

Sim, a palavra é essa mesma: domesticação.

Eu lembro bem da minha pergunta à profissional que me explicava o método: “ou seja: você vai tratar meu filho igual a um cachorro de circo, é isso?”

Hoje, sete anos depois, eu vejo que sim. É isso. Submeter uma criança muitas vezes a 40 horas semanais de ABA é tratá-la como um cachorro de circo que se queira adestrar. Afinal de contas, abanar o rabo não tem função social numa criança, certo?

Pois é. Essa é uma das maiores premissas que fundamentam o ABA: a função social do comportamento da criança. Gente, sério: qual é a função social de todos os comportamentos? E como eles foram construídos?

Se essa é a lógica, então eu poderia ter aplicado um ABA na minha professora de Geografia do sexto ano que me obrigou a decorar países e capitais do mundo inteiro porque, fala a verdade, que função social tem isso? Sem contar que hoje o mapa-múndi tá totalmente diferente daquela época.

Que função social tem decorar todas as tabuadas? Que função social tem resolver equação de segundo grau? Sabia que no Japão se come miojo (que lá se chama lámen) chupando o macarrão? E aqui fazer esse barulho pra comer é considerado falta de educação? Sabia que os esquimós, para demonstrar satisfação com a visita de um amigo, lhe oferece a esposa para passara noite? Conheço um monte de gente que acha supernojento o costume de passar o chimarrão de pessoa pra pessoa, todo mundo botando a boca na mesma bomba enquanto que nos lugares onde essa bebida é um costume, isso é totalmente naturalizado.

E aí? Vai um ABA aí pra você entender que deve oferecer sua esposa para passar a noite ao seu amigo que lhe fez uma visita? Você vai ganhar o seu doce preferido sempre que concordar com isso, viu? Não é superlegal?

Pois é. E isso que estamos fazendo uma comparação esdrúxula. Estamos falando de hábitos culturais/sociais. Coisas que, ainda que demandem sacrifício e quebra de paradigmas, podem ser escolhas e podem ser mudados. São comportamentais.

O principal objetivo do ABA é “adequar o comportamento do autista na escola, em casa e nos lugares”. Então tá. Vamos adequar seu comportamento e o da sua esposa quando vocês forem visitar um esquimó ou um esquimó visitar a sua casa. Ou quando você for ao Rio Grande do Sul e não gostar de chimarrão. Quem ou o que vai te obrigar a?

Bem. Leve em conta que o autista não apenas quer, mas também precisa simplesmente ser quem ele é. Como diz uma amiga: “não é comportamental. É neuronal”. Mas sua existência aqui neste mundo psicofóbico o faz se sentir como você tendo que fazer visitas aos esquimós todos os dias. E veja bem: o costume dos esquimós, sim, é uma questão comportamental. E mesmo assim, é uma missão quase impossível mudar isso porque são costumes arraigados. Da mesma forma que não há escolha pra você acreditar ou não acreditar que Deus existe, está internalizado, arraigado. E, sim, é uma escolha sua, mas é mais forte do que você. Tão forte a tal ponto de muitos acreditarem que não é uma escolha.

Agora faça um esforço por imaginar o quanto é difícil mudar comportamentos que não são escolhas, mas, sim, necessidades. E aí acontece de meu filho mexer as mãos. Isso não tem função social. E lá vem o ABA querer tirar isso do meu filho porque não tem função social. Mas mexer as mãos não é uma escolha: é uma necessidade do meu filho e independe do que as convenções sociais acham ou desacham disso. E nem vou falar do respeito com que habitualmente tratamos as escolhas dos autistas néãm… porque isso vai gerar outro textão em algum momento.

Agora vamos voltar ao início deste texto e fazer a ligação com o Hino Nacional, a tabuada e os países e capitais.

O cérebro dos autistas funciona diferente do meu e do seu cérebro. Coisas que precisamos de esforço para aprender e decorar, eles assimilam com mais facilidade. E coisas que nós nascemos sabendo, eles precisam de esforço para aprender. Uma dessas coisas são as regras sociais.

Para um autista, um encontro social pode ter o mesmo significado que a expressão “impávido colosso” ou ser algo tão em ordem invertida quanto a frase “ouviram do Ipiranga as margens plácidas” para quem é neurotípico, mas não tem familiaridade com o Hino Nacional. Tem que haver um esforço de interpretação e compreensão. E, em alguns casos, vai só na decoreba mesmo. Ou você vai me dizer que o sentido da tabuada do 8 é simples assim e flui tão naturalmente que não precisa de explicação?

Portanto, camaradas, ABA é tortura. E ABA é uma indústria. Uma indústria tão lucrativa quanto o protocolo DAN/MMS, ozonioterapia ou uma tal de “medicina de Deus” que vendem a ilusão da cura para algo que não é doença. ABA joga sujo quando oferece recompensa para a pessoa ser o que não é. (Pato amarelo manda uma lembrancinha pra te recompensar, aliás…). O método ABA é patrocinado por organizações que lucram muito. E há uma discussão que pretende fazer com que o Ministério da Saúde invista nesse método para oferecê-lo via SUS no Brasil. Além disso, os maiores planos de saúde do país só credenciam profissionais que tenham habilitação em ABA. Bem, leiam o que diz um artigo escrito por um pai que levou seu filho para esse método por algum tempo. O título em português é “Um guia para os pais odiarem a terapia ABA”. O texto é em inglês, mas nada que um tradutor automático não ajude.

Vai só um trechinho para degustação: “”É a única prática “médica” em que um indivíduo pode ser retirado da rua, com 6 semanas de treinamento, e depois enviado como “terapeuta”. Os terapeutas geralmente recebem muito pouco, são tipicamente mais jovens e inexperientes e são gerenciados por indivíduos com pouco mais tempo na indústria.”

ABA é psicofóbico em essência e mutila pessoas. Mutila da pior forma: por dentro. De um jeito que não tem muito como mostrar, na maioria das vezes. Eu nem precisaria dizer que quem fala isso não sou eu (até porque sim, eu falo haha). Basta uma “análise aplicada” pra perceber que esse método é só mais uma ferramenta de imposição pela robotização de pessoas. Isso se confirma cada  vez que presencio cenas como a que presenciei um mês atrás de uma profissional falando para uma plateia que estava orgulhosa do seu paciente que “hoje é normal” graças à terapia. Mas, como aliás já fui desqualificada por pessoas que dizem que meu discurso é baseado em “mera opinião”, deixo os autistas mesmo falando com vocês.

Tem a Fernanda Santana, presidente da Abraça e o seu discurso na ONU, em Nova Iorque. Tem Ido Kedar em um texto publicado pelo blog Autismo em Tradução. Se depois de tudo isso você ainda não conseguir aceitar e compreender que comportamentos serem ou não serem aceitáveis é uma questão de imposição social e não de certo ou errado, bem, sugiro que quem esteja precisando de terapia seja você.