Quando você tem uma informação que foi construída com base em dados estatísticos e a partir de métodos que podem ser empregados em qualquer lugar do mundo que levarão sempre ao mesmo resultado, em linhas gerais você tem uma informação com base em evidências científicas.
Dizem por aí que o autismo é um mistério. Que é impossível definir o que seja o autismo, devido à grande variedade de características que compõem cada indivíduo.
Sim, cada autista é diferente, afinal, são seres humanos – nem seres estranhos e muito menos anjos, certo?
Certo.
Nos meus cinco anos de atuação relacionada a esse assunto, o que mais percebo é o uso da palavra “mistério” como uma muleta. Neste ano, mais uma vez, dei capacitação para professores da rede pública de ensino. Eram 200 profissionais divididos em turmas de mais ou menos 10 cada uma.
Não teve uma única turma que não me disse: “o autismo é um mistério. O autismo é uma caixinha de surpresas. Não temos como saber o que é o autismo”.
Para alguém como eu, essa fala tem o efeito de um punhal.
Porque ela demonstra que, se meu filho mais velho ainda estivesse na escola, ele estaria nas mãos de gente cega que sequer se deu ao trabalho de buscar informação a respeito das pessoas com quem esses profissionais trabalham diariamente.
Não.
O autismo não é um mistério.
Tem muita pesquisa científica sobre autismo tornando possível definir com precisão o que é um cérebro autista e o porquê da variedade de comportamentos e características. Dentro das diferenças, todos estarão dentro de um padrão.
Então, pra facilitar a vida de todas as pessoas que se interessam pelo autismo, estamos criando o projeto Autismo em Evidências.
Chega de mentiras.
Autismo tem definição sim. Existe. É uma condição neurológica de base neuronal que acompanha o indivíduo do nascimento à morte. Ou seja: seus sinais podem ser detectados desde muito cedo e quanto mais cedo o forem, melhor será a vida desse indivíduo e de sua família.
Essa discussão que envolve uma recente lei para a detecção precoce de sinais de autismo em bebês nos fez antecipar o trabalho e lançar o Autismo em Evidências antes do previsto. Convido a todos e todas para assistirem ao nosso vídeo de apresentação e a lerem a nossa carta aberta a respeito da discussão sobre a Lei 13.438.
Autismo em Evidências – Carta Aberta sobre a Lei 13.438
Somos um grupo de 11 mulheres, entre autistas e mães de autistas, das mais diversas profissões, que vem trabalhando na reunião de informações embasadas em evidências científicas sobre o autismo e a neurodiversidade. Essas informações serão publicadas em um portal na internet que deverá ser lançado em meados de 2018 com o objetivo de desmistificar tudo o que orbita esse universo.
No entanto, não podemos deixar de nos manifestar no debate em torno da Lei 13.438, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), tornando “obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico.”
Muitos posicionamentos, tanto entre os contrários como entre os favoráveis à nova lei, estão calcados na desinformação. A começar pelo fato de a chamarem como “a lei do autismo”. A determinação não se refere somente ao autismo, mas a toda e qualquer neurodivergência, condição que irá acompanhar o indivíduo do seu nascimento à sua morte.
Mas nós vamos nos concentrar no autismo. Ao contrário do que se diz, essa condição não é um “mistério”, uma “caixinha de surpresas” ou uma doença. É uma condição neurodivergente que tem como origem principal a herança poligênica, como já era assinalado por Hans Asperger na década de 1940. É uma deficiência amparada pela Lei Brasileira de Inclusão e pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Nós somos, em parte, críticas à nova lei e favoráveis à proposição de um novo projetoque altere três questões:
1 – O termo utilizado (riscos psíquicos é inapropriado para uma condição predominantemente genética como o autismo, o ideal seria sinais de neurodesenvolvimento diverso);
2 – A faixa etária (o protocolo hoje mais adequado para rastreamento precoce é utilizado entre 16 e 30 meses, o M-Chat);
3 – A especificação do rastreamento ser feito por pediatras: é fato que boa parte das consultas puericulturais no SUS não são realizadas por pediatras e sim médicos de família e enfermeiros.
Mas, ao mesmo tempo, uma das virtudes da lei é aumentar as chances de um diagnóstico precoce. O desconhecimento por parte dos profissionais de saúde no Brasil, incluindo pediatras, é um dos nossos grandes problemas.
A média de diagnóstico de crianças em outros países tem sido entre três e quatro anos de idade(1). No Brasil, onde não há sistematização de procedimentos para a identificação precoce, um grande número de crianças cresce sem intervenção especializada, comprometendo sua autonomia futura e o seu desenvolvimento biopsicossocial.
O diagnóstico precoce é considerado a melhor ferramenta para proporcionar qualidade de vida, autonomia e empoderamento para o autista, como preconiza a Lei Brasileira de Inclusão (LBI):
“Art. 14. O processo de habilitação e de reabilitação é um direito da pessoa com deficiência.
Parágrafo único. O processo de habilitação e de reabilitação tem por objetivo o desenvolvimento de potencialidades, talentos, habilidades e aptidões físicas, cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais, profissionais e artísticas que contribuam para a conquista da autonomia da pessoa com deficiência e de sua participação social em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.
Art. 15. O processo mencionado no art. 14 desta Lei baseia-se em avaliação multidisciplinar das necessidades, habilidades e potencialidades de cada pessoa, observadas as seguintes diretrizes:
I – diagnóstico e intervenção precoces; (…)
Vale ressaltar nosso posicionamento em relação a algumas afirmações que têm sido veiculadas de forma incisiva:
“A lei incentiva a patologização infantil e a medicalização, atendendo interesses escusos da indústria farmacêutica”:
A palavra patologização é um neologismo que tem sido usado para designar de modo pejorativo a nomeação de diversas dificuldades apresentadas pelas pessoas, especialmente na infância e adolescência, tanto no âmbito cognitivo-comportamental, como na área da saúde mental. Entretanto, estudos científicos demonstram que tais dificuldades podem sinalizar alterações no neurodesenvolvimento precursores de dificuldades na área da saúde mental posteriormente, de modo que negar sua existência implica em negar também o acesso à avaliação e intervenção adequada.(3) O discurso contra a patologização da infância reflete preconceito e capacitismo.
A lei não propõe diagnóstico de nenhuma criança aos 18 meses de idade, mas tão somente o reconhecimento da existência de sinais de alerta, para que as crianças triadas possam ter um acompanhamento O diagnóstico tardio ou a sua ausência é grave problema de Saúde Pública. Há comprovações de que crianças que receberam intervenção precoce têm melhores resultados (4). É com ela que iremos prevenir os efeitos derivados dos déficits que irão interferir em funções posteriormente (4). Isso significa que, quanto mais precocemente as condições acima mencionadas forem detectadas, maiores as possibilidades de desenvolvimento da autonomia plena dos autistas.
Quanto à medicalização, com exceção de casos bastante específicos, as principais terapias que dão suporte aos déficits e impedimentos relacionados a um diagnóstico, principalmente o autismo, não são medicamentosas. As abordagens são as mais diversas, desde a fonoaudiologia até a terapia ocupacional e a comportamental, todas ancoradas em evidências científicas. É nos primeiros seis anos de vida que essas terapias têm maior efetividade, basta compreender a formação do sistema nervoso para perceber isso. E a detecção de sinais, que é o que sugere a nova lei, não significa um diagnóstico fechado, mas um acompanhamento mais minucioso desses sinais.
Reconhecemos que a hipermedicalização existe, mas, a negligência é um problema ainda maior. Além disso, é justamente a ausência de estatísticas confiáveis que dificulta o desenvolvimento de políticas públicas que ofereçam assistência integral à criança, seja ela neurodivergente ou não.
Diagnóstico não é rótulo, muito menos a detecção precoce de sinais de atraso do neurodesenvolvimento. É norte. É direcionamento. Em um país onde não temos sequer base para realizarmos uma pesquisa segura de prevalência devido à ausência de equipamentos públicos confiáveis e o gigantesco número de subdiagnósticos (principalmente entre mulheres, negras, pobres e não residentes nas capitais), chega a ser uma piada de mau gosto essa preocupação dos “especialistas”.
“A criança que for erroneamente diagnosticada poderá se tornar autista”.
Esse é um não argumento, é puro desconhecimento da condição. Ninguém “se torna” autista, assim como ninguém deixa de ser autista. A pessoa nasce, cresce e morre autista. Já o contrário é comum em nosso país: crianças autistas desassistidas que, pela ausência de apoio na saúde e na educação, acabam perdendo chances valiosas de se tornarem sujeitos da sua própria história.
“Em nenhum lugar no mundo aplica-se triagem antes dos 18 meses.”
EUA, Reino Unido e Holanda fazem a triagem exatamente nessa faixa etária (CDC). Na Holanda existe uma lei nacional desde 2016 que obriga o sistema de saúde a analisar oito sinais de “alarme” de autismo em bebês. No Reino Unido utiliza um checklist para a investigação a partir de 18 meses. Estudo recente na Dinamarca mostra os resultados da triagem de crianças entre 9 e 10 meses em serviços comunitários. (5)
Concordamos que o ideal seria que a lei tratasse de uma triagem entre 16 e 20 meses, pois consideramos 18 meses O marco para a triagem e não seu ponto final.
“Essa decisão foi antidemocrática e não contou com um debate sobre o tema”.
Mentira. Aconteceram diversas audiências que discutiram o projeto. Dizer o contrário ofende a todas e todos que participaram do debate. Seria melhor apontar a necessidade de ampliá-lo, ao invés de simplesmente dizer que ele não existiu.
“A lei penalizará responsáveis que não levarem suas crianças para serem submetidas ao rastreamento”.
O ECA já prevê penalização para qualquer tipo de negligência. A submissão à triagem de sinais seria apenas mais um procedimento entre os já existentes no atendimento a uma criança. A lei não irá inovar nesse campo, juridicamente falando.
“A lei irá beneficiar o protocolo IRDI, que eu não confio”.
Atenção a esse ponto! Fomos informadas de que existe um protocolo específico sendo discutido para aplicação da legislação, o IRDI – Indicadores de Risco para Desenvolvimento Infantil de 0 a 18 meses. Tal instrumento NÃO tem o nosso aval.Criado por psicanalistas, o IRDI é composto por 31 indicadores voltados à relação cuidador-criança, na “perspectiva de que as expressões iniciais dos problemas de desenvolvimento podem ser situadas nos desencontros das trocas, demandas e linguagem estabelecidas entre o cuidador e o bebê”, ignorando as últimas evidências científicas na área da genética e da neurociência.
Nossa posição é clara: como a lei NÃO determina um protocolo específico, cabe a todas e todos nós discutirmos e definirmos como essa detecção será feita e isso é muito importante sim! É nesse debate que queremos centrar nossos esforços, para que a legislação seja uma base a fim de começarmos a mudar o atual cenário de atendimento da saúde mental brasileira. O uso sistematizado do M-Chat aos 18 meses, por exemplo, como é feito na Austrália e Reino Unido, tem possibilitado a detecção de atrasos de neurodesenvolvimento com grande sucesso e a maioria das crianças autistas identificadas apresentam um desenvolvimento muito superior ao esperado caso os déficits não fossem trabalhados precocemente.(6)
Não acreditamos que uma lei irá resolver todos os problemas. Na verdade, ela seria totalmente desnecessária se houvesse capacitação adequada em avaliação do neurodesenvolvimento na formação de pediatras e outros profissionais. Mas, no momento, é um pontapé inicial para caminharmos em direção a uma assistência mais digna a essas milhares de crianças e adultos que hoje sofrem por não terem acesso a qualquer suporte terapêutico e aos direitos que lhes são garantidos por lei.
Que possamos nos unir para discutir o que de fato fará diferença na vida dessas crianças e dessas famílias.
Autismo em evidências
Adriana Torres, Adrianna Reis, Amanda Paschoal, Andrea Werner, Aline Veras, Fernanda Santana, Giselle Zambiazzi, Iara Assessú, Melania Amorim, Raquel Del Monde, Rita Louzeiro.
Referências:
1- Chakrabarti S, Fombonne E (2005) “Pervasive developmental disorders in preschool children: confirmation of high prevalence.”Am J Psychiatry 162:1133–1141
2 – SILVA, Micheline and MULICK, James A.. Diagnosticando o transtorno autista: aspectos fundamentais e considerações práticas. Psicol. cienc. prof. [online]. 2009, vol.29, n.1, pp.116-131. ISSN 1414-9893. https://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932009000100010.
3 – “Measurement issues: measures of infant mental health.” Szaniecki e Barnes Child and Adolescent Mental Health Vol 21, Issue 1 Feb/2016
4 – Harris, S. L., & Handleman, J. S. (2000). Age and IQ at Intake as Predictors of Placement for Young Children with Autism: A Four- to Six-Year Follow-Up. Journal of Autism and Developmental Disorders, 30, 137-142.
https://doi.org/10.1023/A:1005459606120
5 – “Predictive validity of a service-setting based measure to identify infancy mental health problems.” Ammitzboll e outros, European Child Adolescent Psychiatry Oct/2017
6 – Screening for Autism in young children – the modified Checklist for Autism in Toddlers (m-CHAT) and other measures”
Dummont-Mathieu e Fein, Mental Retardation and Developmental Disabilities Research Reviews 11:253-262 (2005)
Ótimos esclarecimentos sobre o autismo.