Existem assuntos que nascem de conversas corriqueiras. Mais especificamente, falo daqueles famosos diálogos cotidianos, ou melhor dizendo, daquele bate-papo na fila do pão. Sem dúvida alguma, uma conversa inusitada acaba sendo uma das nossas melhores formas de socializarmos, ainda que, muito pouco se tem dialogado pelas filas da vida, infelizmente.
Imaginemos uma cena, cada qual com sua tela preta em punho, cabisbaixos e hipnotizados como se a alma não fizesse parte do ambiente da padaria. E cá pra nós, a padaria é simbolicamente parte da nossa estrada diária, como se fosse uma espécie de ponto fixo do caminho de volta pra casa depois do trabalho.
O cotidiano tem dessas coisas, ele nos presenteia com um bom padeiro e com um turbilhão de informações produzidas pelas redes sociais, que na sua magnitude instantânea empacotam matérias quentinhas, como o nosso querido pão francês.
Estamos virtualizados – isso é um fato. Quem ainda compra jornal impresso pode ser taxado de sujeito com baixa consciência ambiental. Compramos informações pelo título, pouco sabemos do miolo do pão. Validade, qualidade e procedência da notícia, o que são? O que é real e o que é falso em nossos smartphones oscila muito quando pensamos na consistência dos dados, ou seja, pouco temos de sólido sobre as verdades que fazem parte do nosso dia a dia. São tempos líquidos, seu Bauman já dizia.
A sensação de conhecimento é uma forma de prazer, tal qual saborear um pão quentinho com margarina. E por falar em conhecimento, o pão francês foi uma tentativa de recriar o pão europeu, você sabia? No entanto o pão nosso de cada dia possui gordura e açúcar na massa, algo que dá a ele os aspectos da originalidade brasileira. Onde eu moro, por exemplo chamamos o pão de “cacetinho” devido à espessura e casca dura.
No início do século XX, para a elite brasileira, passar um tempo em Paris era quase que obrigação, uma forma de se manter atualizado com os costumes e cultura de primeiro mundo. Ir à França era sinônimo de estar informado sobre o que se passava com o mundo. Hoje você não precisa ir à França para “saber das coisas”, porém ao ler tudo que é ativado na sua linha do tempo, é necessário que reconsideremos as “verdades”, pois elas podem facilmente ser contrapostas pela falsa segurança de que estamos aprendendo com tudo e que sabemos sobre qualquer tipo de conteúdo. Você pode ter plano de 4G, mas se não souber onde encontrar aquele pão francês, humm… pode acabar comendo só uma casca dura esfarelada.
Não paremos por aí, inegavelmente ninguém sabe sobre tudo e nunca saberemos. Os tempos são outros, não existem mais enciclopédias nas prateleiras das salas de estar e poucos sabem o que obras completas de Freud, Kant e Rousseau era sinônimo de evolução intelectual. Agora muito se sabe sobre tudo, mas pouco se sabe sobre nada. As inúmeras imagens e textos que lemos incessantemente nos grupos do whatsapp sobre política, economia e alimentação, por exemplo, tampouco foram feitas por experts nos referidos assuntos. O que nos cabe é nos preocuparmos com aquilo que fazemos dessas informações, sendo assim responsáveis pela nossa liberdade de produzir e partilhar informações em tempo real.
Uma parte prejudicial existente na ultravelocidade e acesso da comunicação está no momento em que aceitamos uma notícia sem pestanejar, e compartilhamos sem percebermos o que realmente estamos absorvendo e multiplicando. Todos nós em algum momento acabamos, infelizmente, reproduzindo supostas verdades carregadas de discursos polarizados de: seja “assim” ou “assado”, posturas que alimentam muito da indiferença e do ódio com quem aqueles não nos identificamos.
Tem assuntos que discorremos que não brota de um contato com alguma rede de notícias, e sim das conversas reais, cruas e inesperadas de uma estação rodoviária. E mais, quando a conversa acontece com uma pessoa que acabou de ser libertado, após cumprir pena em regime penitenciário, o ato de esperar um ônibus deixa de ser algo comum e se torna um incremento à subjetividade. Numa conversa com alguém que acabou de sair da prisão, há uma forte inclinação ao diálogo sobre liberdade em uma proporção digamos, continental, visto que, um homem que se sente “livre” pode falar algo novo a alguém como eu que nunca passou por um presídio.
“Apesar de nos sentirmos presos diariamente a certos modos e condições de vida, somos incapazes de reconhecer a magnitude do aprisionamento físico a uma pessoa.”
Dependendo do nosso temperamento ou disposição, que podem mudar conforme as circunstâncias, buscamos em certo modo ouvir do outro aquilo que nos convém, aquilo que vem ao encontro das nossas ideias, uma espécie de afinidade ao raciocínio. Como se a vida pudesse ser uma receita de pão perfeito…
Nesse sentido, estar inclinado a querer um papo sobre liberdade com um sujeito que estava preso possui o status de atualizar nossos princípios e sentidos na vida. Querer aprender com quem nos pode oferecer algo diferente nos torna maior. O nosso papel enquanto cidadão e a responsabilidade sobre nossos atos são deveres individuais mas que convergem em um mundo social justo e harmonioso. Dentro desta conversa me dou conta de que eu poderia ser/estar preso um dia e que só de pensar sobre, me imagino incapaz de sobreviver em um ambiente recluso. O mais relevante do diálogo com uma pessoa que cumpriu pena é aprender com ela que a liberdade não tem preço. Não importa quanto o dinheiro, status ou o poder tornem uma pessoa importante, satisfeita ou feliz a liberdade de ir e vir é o maior valor a ser conquistado. Nós podemos nos prender a condição de querermos ser reconhecidos, bem quistos, felizes e colocarmos estes atributos a frente das consequências, contudo quando se ouve de uma pessoa que passou dias, meses, anos afastado do convívio com a sociedade, não consigo traduzir a relevância do poder de se sentir livre.
Talvez o maior aprisionamento em nossas vidas seja quando nos sentimos com algum poder capaz de eliminar o Outro seja ele quem for. Não somos fortes se isso faz de um Outro um ser inferior a nós. Somos responsáveis pelas nossas vidas e em parte podemos ser motivo e força de transformação do mundo. Criamos as nossas prisões e habitamos elas cotidianamente, está em nós mesmos e em nossas atitudes produzirmos formas individuais e coletivas de combatermos todas as formas de opressão e violência.
Em tempos de ódio, ganância e crise saibamos que compartilhar um pão dormido que seja não muda o todo mas faz das pequenas partes uma parte melhor do todo. Afinal, quem somos nós na fila do pão?